NOTÍCIAS
SOBRE BIOLOGIA voltadas ao público geral com frequência fazem referência à
briga de acadêmicos contra o criacionismo –o movimento defensor de que seres
vivos foram criados por Deus, não pelos processos descritos na teoria da
evolução. Ofuscado por essa discussão infrutífera de cientistas lançando
argumentos racionais contra mentes religiosas impenetráveis, porém, existe um
debate sério sobre se a biologia evolutiva está ou não carente de atualização.
Esse
movimento defende que a chamada “nova síntese” –a teoria da evolução de Darwin
reformulada à luz da genética e, depois, da biologia molecular– precisa ser
recauchutada. Liderados por biólogos como Gerd Muller, da Universidade de
Viena, e Eva Jablonka, da Universidade de Tel Aviv, esses
pesquisadores defendem aquilo que batizaram de EES (Síntese
Evolucionária Estendida). É um corpo de conhecimento baseado em fenômenos que
correm paralelamente aos descritos pela seleção natural de Darwin. Mas seria
esta nova biologia algo com força suficiente para tornar a nova síntese uma
teoria ultrapassada?
Para
defender uma mudança radical, Jablonka recorre a fenômenos como a epigenética
–transmissão de características que não requer mudança do DNA– e à construção
de nichos –capacidade de animais de alterarem seu próprio ambiente e, portanto,
modificar as pressões que a seleção natural exerceria sobre eles mesmos. Também
são alvo de estudo da EES o “viés de desenvolvimento” –a impossibilidade de
organismos de adquirirem certas formas enquanto evoluem– e a plasticidade
–capacidade de um indivíduo de adquirir diferentes formas reagindo a seu
ambiente.
Todos esses
fenômenos, que são tratados pela (velha) nova síntese apenas como processos
marginais, seriam sinal de que uma teoria de evolução com excesso de foco na
biologia molecular se tornou incapaz de dar conta da explicação de
processos que ocorrem sem interação com o DNA. Só a incorporação desses outros
fenômenos, argumentam, pode salvar a teoria da evolução de se tornar algo
ultrapassado.
TRAMANDO A
REVOLUÇÃO
Entrevistei
Jablonka em 2007 e achei interessante e bem fundamentada sua defesa de que a epigenética reabilita ideias
malditas do naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829). Mas fiquei
incomodado com sua crítica ao conceito de “gene egoísta”, a expressão criada
pelo biólogo Richard Dawkins para descrever a centralidade da biologia
molecular no processo evolutivo.
No ano
seguinte, um congresso organizado por Jablonka e outros correligionários em
Altenberg (Áustria) mostrou com mais clareza qual era a intenção do grupo. Os
16 cientistas presentes finalmente cunharam ali a sigla EES, para colocá-la em
oposição ao que chamavam de SET (Teoria Evolucionária Padrão), rebatizando a
nova síntese com um nome que a faz parecer algo ultrapassado. Ninguém ali se
atreveu a usar o palavrão iniciado com “P”, mas a intenção era claramente
a de declarar que a EES seria um novo paradigma na biologia.
Muita gente
se impressionou. Outros, incluindo Dawkins, nunca deram muita bola. Desde
então, deixei de acompanhar essa escaramuça, e confesso que a maior parte do
conhecimento de almanaque que tenho sobre evolução acabei adquirindo como
ouvinte no curso de Hopi Hoekstra e Andrew Berry, professores de Harvard que
não simpatizam com o grupo de Jablonka.
CONFRONTO
DIRETO
Foi só
lendo a edição desta semana da revista “Nature” que finalmente tomei pé de como
está essa discussão agora, ao me deparar com dois artigos, um a favor e um contra
decretar que a teoria da evolução precisa ser repensada. Em contraposição
estavam justamente as duas biólogas que já tive o
privilégio de ouvir pessoalmente, Jablonka e Hoekstra, além de seus
coautores.
Vale a pena
ler. Como já deixer transparecer meu viés aqui, posso dizer que a argumentação
de Hoekstra me convenceu de que a sigla EES é mais um adendo teórico do que uma
revolução. É uma tentativa de alguns biólogos de se autoatribuírem a
responsabilidade por uma mudança de paradigma, quando, na verdade, o que ocorre
é um avanço gradual, no qual epigenética, construção de nicho, plasticidade
etc. vão se integrando à teoria da evolução tradicional.
Mas o grupo
da EES não quer saber de se render. “Essa não é uma tempestade num copo d’água
acadêmico, é a luta pela própria alma da disciplina [da evolução]”, escreve o
grupo de Jablonka, num texto com Kevin Laland como autor principal. Hoekstra
retruca: “Nós também queremos uma síntese evolucionária estendida, mas para nós
essas palavras estão em letra minúscula, porque nosso campo sempre avançou
assim”.
DE VOLTA ÀS
ORIGENS
Talvez seja
tudo uma questão de nome. Darwin, por exemplo, publicou um livro inteiro sobre
como minhocas alteram seu próprio ambiente por meio de sua ação no solo. “Hoje
nós chamamos esse processo de construção de nicho, mas o novo nome não altera o
fato de que biólogos evolucionários têm estudado feedback entre organismos e
seu ambiente por mais de um século”, diz Hoekstra.
O problema,
talvez, seja o de achar que a biologia precisa de uma grande ruptura, para
seguir em frente apenas por meio de grandes saltos. A quebra de paradigma, o
modelo de avanço científico descrito pelo filósofo Thomas Kuhn, não se
aplica muito bem à biologia, já defendia o
saudoso Ernst Mayr, biólogo com importantes contribuições filosóficas à
disciplina. “Precisamos também lembrar que Kuhn era físico e que sua tese
reflete o pensamento ‘essencialista’ e ‘saltacionista’ tão disseminado na
física”, escreveu.
Mesmo a
teoria de Darwin, a coisa que mais próxima de uma revolução que já
ocorreu dentro da biologia, levou quase um século de debates e avanços graduais
para se consolidar na forma da nova síntese. Não se estabeleceu de forma tão
brusca quanto a relatividade de Einstein, por exemplo. E mesmo a
física pós-Einstein não parece estar avançando em saltos tão grandes.
Não há nada de errado com a ciência feita por Jablonka, Muller e seus
colegas, que têm dado boas contribuições para entender processos biológicos
complexos. Mas vender o advento da epigenética e companhia como uma
revolução me parece algo um tanto caricaturesco.
Fonte
: http://teoriadetudo.blogfolha.uol.com.br/2014/10/14/vem-ai-a-nova-biologia-ou-nao/